Proprietária de terras. Montanhista. Viajante. Mulher de negócios. Esses não são termos comumente usados para descrever uma mulher de 1830, mas a inglesa Anne Lister se qualifica a todos eles. Sempre vestida de preto e com uma personalidade marcante, Anne herdou a propriedade da família, Shibden Hall, assumindo também os negócios. Investiu no carvão que havia nas terras e fez fortuna disso. Uma típica “mulher à frente do próprio tempo”. A história dela pode até ser bem popular em Halifax, sua cidade natal e onde fica sua casa histórica, atualmente aberta para visitação, mas para muita gente a trajetória de Anne só se faz conhecida agora, com o lançamento de Gentleman Jack, nova série da HBO que estreou na última sexta-feira de abril no Brasil.
“Ela foi uma mulher realmente fascinante em todos os sentidos. Era inteligente, corajosa e muito otimista”, explica Sally Wainwright, criadora e roteirista da série, à Vogue Brasil. “Era ótima em negociar, boa de conversa e estava sempre três passos à frente de todo mundo”. Embora fosse uma talentosa businesswoman, a ousadia de Lister não se limitava aos negócios. Em um diário codificado com mais de 5 milhões de palavras e 7.500 páginas, ela descrevia seu dia-a-dia bem como casos amorosos com outras mulheres e é hoje considerada a primeira lésbica moderna. Sally vinha trabalhando nesse projeto desde 2003, mas só conseguiu viabilizar a produção em 2016. “Eu acho que a hora de contar esta história é mesmo agora. 16 anos atrás talvez o público não estivesse interessado em ver uma mulher de 40 anos na tela, ainda mais uma mulher que desafiava convenções de gênero e sexualidade. Hoje as pessoas são mais articuladas e abertas a essas questões”.
Os diários permaneceram secretos até os anos 1980 e ainda hoje há páginas que nunca foram decodificadas. Em 2011 esse material foi declarado documento fundamental na história britânica pela UNESCO, tanto pelos registros sobre as minas de carvão quanto pelo fato de que Anne eventualmente passou a viver como casal com sua vizinha Ann Walker e as duas chegaram a validar a união religiosamente com a benção de um padre, tornando-se esse o primeiro casamento lésbico na história da Inglaterra.
O complicado relacionamento de Lister e Walker é um dos pontos centrais da trama, protagonizado pelas atrizes inglesas Suranne Jones (Doctor Who) e Sophie Rundall (Peaky Blinders). “A Ann Walker tinha muito dinheiro e isso certamente foi um atrativo para Anne Lister corteja-la, mas acho que ela se surpreendeu quando começou a se apaixonar”, comenta Sophie, que dá vida à “dolorosamente tímida” Ann. “Ao meu ver, esse aspecto interesseiro e manipulador a torna uma pessoa ainda mais complexa”, completa Sally.
Suranne interpreta Lister com vigor, com a câmera tentando acompanhar seu ritmo enquanto ela caminha por Shibden Hall ou pelas paisagens de West Yorkshire. De vez em quando, até se dirige ao público, uma escolha criativa que, segundo Sally, evoca a mesma intimidade dos diários da personagem (e que em nada teve a ver com o sucesso de outra série britânica, Fleabag, que também quebra a quarta parede). Com a representação de uma mulher que aparenta tanta autoconfiança é fácil esquecer o quão radical Anne era à época, atitude também refletida nas roupas que vestia. Num período em que as mulheres usavam vestidos volumosos, com babados e mangas bufantes, ela tomava itens do guarda-roupa masculino como referência para instruir seu alfaiate. “Ela não usava cartola como na série, mas tomamos essa liberdade para que o público entendesse o quão extravagante era o visual dela”, explica a roteirista sobre o figurino assinado por Tom Pye. E quando ela aparece em cena com outras mulheres, como sua irmã, vê-se o contraste. “Ela vestia algo parecido com o que seria o traje feminino de equitação daquele período, mas se vestia assim todos os dias. Botas masculinas, casacos masculinos e um espartilho por baixo. Era lésbica, mas tinha essa atitude não-discriminatória para com gênero. Nas roupas, na educação, na sua ocupação”, nos conta Suranne, sem esconder a fascinação pela história da mulher apelidada “Gentleman Jack”.
Por não se restringir às normas do comportamento feminino do século 19 – “aquela coisa bem Jane Austen”, há ainda quem considere Anne Lister um ícone feminista. “Ela era um ícone feminista, sim, por diversas razões”, argumenta Sally. “Mas também não era bem isso. Ela não fez nada do que fez com o intuito de impulsionar os direitos das mulheres, isso nem era discutido naquele tempo. Ela era muito autêntica e movida pelos interesses dela mesma, gostava de aproveitar a vida. E o que ela fez de mais brilhante foi não se restringir a normas e seguir a sua própria narrativa, escrever a própria história, e ser, corajosamente, quem era”.
Fonte: Vogue Magazine