Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 1 milhão de pessoas cruzaram as fronteiras, por terra ou por mar, de países do Oriente Médio para chegar a Europa.
Este número representa 365% de crescimento em relação a 2014, isto é, o número de imigrantes e refugiados que chegaram a Europa mais do que quadruplicou em um ano. Contudo, este índice pode ser ainda maior visto que muitos países têm dificuldade de registrar todas as pessoas que chegam. Síria é a origem da maioria dos refugiados, seguido por Afeganistão e Iraque.
Imagine a dificuldade de gerir um hospital diante de tamanho caos e desordem que encontram estes países. É justamente sobre esse desafio que a revista Healthcare Management traz, nas próximas páginas, uma entrevista exclusiva com médicos do Amiri Medical Complex (AMC) do Afeganistão. Eles contam as dificuldades de fazer medicina por lá, os riscos que estão submetidos e a difícil tarefa de oferecer o mínimo de atendimento para os pacientes.
Amiri Medical Complex, uma vitória no Afeganistão
A ideia de construir o Amiri Medical Complex nasceu em 2005, quando Mirwais Amiri, CEO do hospital, estava na Índia fazendo uma especialização em cardiologia. “Lá vi muitos afegãos procurando por atendimentos básicos em cardiologia. Percebi que nós deveríamos ter um centro dessa especialização no Afeganistão.”
Então, em 2006, Mirwais Amiri, como todo o suporte de seu pai, o engenheiro Abdul Manan Amiri, iniciou as atividades do centro de diagnósticos do coração com a ajuda do Instituto de Pesquisa e Coração da Índia, onde havia feito sua especialização. Finalmente, em 2015 iniciaram as atividades do complexo. “O AMC é a evolução do nosso antigo centro de diagnóstico.”
O Amiri Medical Complex localiza-se em Cabul, capital do Afeganistão. Foi inaugurado oficialmente no dia 11 de abril de 2015 pelo ex-presidente Hamid Karzai. Hoje, o hospital possui cerca de 75 leitos e, por dia, são realizadas uma média de 120 consultas. São 180 colaboradores, entre expatriados e nativos.
Mirwais Amiri afirma que o hospital não recebe nenhum suporte financeiro, nem do governo, nem de outras organizações internacionais. “Não recebemos materiais de consumo, bens de consumo médico de qualquer empresa, governo ou outras entidades. Andamos com as nossas próprias pernas.”
Essa falta de ajuda impõe para a gestão um enorme desafio quanto à sustentabilidade da instituição. O hospital sofre constantemente com o baixo estoque de diversos materiais e não raro é preciso adiar cirurgias e outros procedimentos. “Ainda temos que encaminhar o paciente para outros países locais, onde o custo torna-se ainda maior.”
Buscando justamente um fôlego na gestão, o diretor vem pedindo para governo e organizações internacionais algum suporte para que seja possível oferecer serviços com qualidade e também melhorar a infraestrutura do hospital.
Entre suas reivindicações estão o fornecimento de energia sem custos ou subsídios para tanto, além de isenção de taxas na compra de equipamentos médicos. “O hospital deveria ter maior suporte financeiro, principalmente em tempos de crises como a guerra que vivemos. Nesse momento, todos nós devemos cuidar do complexo hospitalar. É realmente muito difícil gerir um hospital diante de tantos conflitos internos, mas não podemos fugir de nossa responsabilidade.”
Todo este ambiente conturbado acaba repelindo importantes investimentos em todos os setores do país, inclusive na saúde. “Vejo que grandes companhias como Philips, Siemens, Toshiba, entre outras têm medo de abrir filiais por aqui. Fazemos nossas negociações com essas empresas por meio de outros países, o que encarece ainda mais.”
Justamente pela falta de dinheiro, o AMC, atualmente, não vem investindo em inovações tecnológicas, nem em pesquisas médicas. “Isso requer um fundo extra, o que não está disponível no momento.”
Além dos negócios, o caos socioeconômico também reflete no staff do hospital. Isso porque, segundo o executivo, a maioria dos colaboradores é estrangeira e é muito difícil mantê-los diante de tanta vulnerabilidade. “Quando eles saem do país isso acaba interferindo diretamente na qualidade de nossa organização.”
O AMC, assim como o país, sofre com a falta de profissionais especializados, enfermeiros treinados, paramédicos e engenheiros biomédicos. “Mão de obra qualificada é algo que afeta todo o Afeganistão, em todos os setores da economia no geral. Na saúde temos que contratar esses profissionais de países vizinhos como o Paquistão e Índia, o que traz mais gastos para a gestão.”
Para tentar suprir essa falta de profissionais qualificados, o AMC realiza uma parceria com Fortis Escorts Heart Institute, da Índia. Assim, muitos profissionais são enviados para lá com o objetivo de trazer novos conhecimentos de medicina.
Um dia, chegaremos lá…
Inicialmente, o AMC oferecia apenas atendimentos básicos em cardiologia. Agora, o hospital oferece atenções em: cardiologia não evasiva, cirurgias cardíacas para adultos e crianças, cirurgia laparoscópica, pneumologia, odontologia, gastroenterologia, pediatria, otorrinolaringologia, nefrologia incluindo diálise, e medicina de família.
“A maior parte dos casos atendidos são aqueles com problemas cardíacos, hemorragia gastrointestinal, doenças pneumológicas, renais, emergências diabéticas, cirrose hepática”, explica Mirwais Amiri.
Aos poucos, o AMC vem conseguindo realizar importantes ações. Há dois meses, por exemplo, o hospital comemorou as 100 cirurgias cardíacas e os 400 procedimentos de cateterismo cardíaco realizados.
O sistema de saúde do Afeganistão, segundo Amiri, melhorou nos últimos 13 anos. Ele lembra que não havia sequer instalações básicas de saúde nas grandes cidades. Agora, há um pouco dessa infraestrutura até em áreas remotas. Além disso, houve a construção de alguns hospitais de especialidades, tanto públicos como privados, que já estão prestando serviços. “Antes, essas assistências não eram disponibilizadas para a população. Atendimentos básicos eram encaminhados para o Paquistão e Índia.”
Os problemas
Tuberculose, poliomielite, sarampo, malária são algumas das doenças mais comuns no país. Na capital, e em outros centros maiores, as doenças respiratórias respondem pela maioria dos casos atendidos, seguidos por ataques cardíacos e diabetes.
Um alvo errado
Sobre momentos de conflito, Amiri recorda quando o hospital do Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi atingido por forças norte-americanas, na cidade de Kundoz, Afeganistão, em novembro do ano passado. “Independentemente dos lados que envolvem uma guerra, hospitais e outros centros de saúde não devem ser um alvo. O que aconteceu em Kundoz não deve se repetir.”
Naquela ocasião, forças militares dos Estados Unidos atingiram o hospital que foi confundido por um edifício controlado pelo Taliban que também se localizava naquela região. Ainda sob ataque, o MSF avisou as forças que se tratava de um hospital, e não de um centro do Taliban. Mesmo assim o bombardeiro continuou por mais de 17 minutos. A ação desastrosa resultou na morte de 30 pessoas, entre pacientes e funcionários, e 37 feridos. Este foi um dos piores incidentes de mortes civis.
Uma mulher médica no Afeganistão
“Meu maior sonho é ver meu país em paz, desenvolvido e livre de domínios de grupos terroristas.” Este é o desejo de Khatira Zaheen Faiz, uma jovem de 25 anos, estudante de medicina no Afeganistão.
Sua decisão por ser médica a acompanha desde a infância, quando ainda estava na escola primária. “É um grande prazer poder ajudar as pessoas, diminuir sua dor e melhorar suas condições de saúde.”
Para seguir seu caminho, Khatira contou com o total apoio de sua família, especialmente de seu pai, o seu herói como ela mesma faz questão de ressaltar. “Meus pais me apoiam financeiramente e sempre me encorajaram a seguir esta carreira. O que eu tenho hoje é graças as suas preces e apoios”, conta.
Khatira, que está no primeiro ano de residência no hospital do público Ali Abad, também se dedica a cursos fora do país. No AMC, a médica trabalha no setor de cardiologia. “Pretendo atuar na área de cardiologista intervencionista.”
Segundo a estudante, as universidades de medicina do Afeganistão estão formando muitos médicos principalmente em áreas como clínica geral, saúde pública e enfermagem. Lá, tanto universidades públicas, como as privadas, estão conseguindo oferecer o mínimo de infraestrutura para a educação.
As faculdades públicas são de graça, mas as privadas têm diferentes custos, conforme os cursos. “O preço vai de 5.000 AFN (moeda Afegane afegão) a 50.000 AFN por semestre. Os cursos nas instituições públicas duram 14 semestres, já nas particulares o tempo é de 10 a 12 semestres.” Segundo o Banco Central do Afeganistão, no final de fevereiro de 2016 1 AFN correspondia a US$ 68.
Mas não é apenas o alto custo nos estudos o desafio dos estudantes. A guerra vem destruindo a educação, a cultura, a infraestrutura de todos os setores do país. “Nestas situações, ser um médico, aqui, é um grande desafio. Sofremos com a falta de segurança. Precisamos ter uma mente tranquila durante o trabalho, o que, infelizmente, não é possível. E esse risco e medo aumentam ainda mais em mulheres.”
Outros problemas que a futura médica encontra em seu dia a dia é a falta de equipamentos de diagnósticos e a escassez de tecnologia de ponta. “Não temos uma indústria farmacêutica de alta qualidade. O que nos resta é importar esses medicamentos de outros países o que, muitas vezes, também não têm produtos de alta qualidade, não respondendo às nossas necessidades.”