No sábado passado, o bate papo entre Juliana Rangel e o estilista Salvatore Laureano elucidou diversas questões sobre o mercado da Alta Costura no programa Quem Realiza na TV. Caso você tenha perdido, não se preocupe! Todas as edições do programa ficam disponíveis no nosso canal do Youtube, para você assistir onde e quanto quiser.
Mas, em apenas meia hora, diversos pontos do setor mais luxuoso da moda ficaram pelo caminho, e muitas dúvidas pairaram no ar; o que houte couture?
As peças de haute couture, como a categoria alta costura é chamada em francês, exigem alto rigor técnico e são feitas à mão, sob medida e somente em Paris. Geralmente, são vestidos, casacos ou itens de alfaiataria, usados em eventos de gala e red carpets.
Embora seja utilizado erroneamente para definir o trabalho das grifes de luxo, não é qualquer marca ou coleção que está apta a receber esse título. Ao longo do ano, acontecem duas semanas de alta-costura, que estão entre as principais do circuito fashion mundial, em janeiro e julho. Esse é um dos diversos critérios do setor, estabelecidos pela Câmara Sindical da Alta-Costura.
História
O inglês Charles Frederick Worth (1825-1895) é considerado o “pai da alta-costura”. Na década de 1840, o costureiro mudou-se para a capital francesa por achar que Paris teria um solo mais fértil para suas ideias. Assim, abriu o próprio negócio em 1858, a Casa Worth.
“Em teoria, ele não fundamentou [a alta-costura] como regra. O que fez foi lançar determinadas premissas que passaram a ser essenciais ao negócio”, explica o professor de história da moda João Braga, da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
Uma dessas novidades, por exemplo, foi a exibição das criações em modelos. A ideia tomou forma com a própria esposa, Marie. Worth também foi o primeiro a colocar uma etiqueta com o próprio nome nas peças, além de iniciar a tradição de coleções por estação.
Dez anos depois da criação da casa, Worth precisou se sindicalizar, pois já tinha funcionários, e sentiu a necessidade de dar um nome a esse tipo de roupa sofisticada. “Ele chamou de costura, baseando-se na costura e nos costureiros profissionais que faziam as roupas desde a corte de Luís XIX”, diz o professor. Em 1868, nasce então a Câmara Sindical da Costura, Fabricantes de Roupas e Alfaiates para Mulheres.
Os filhos Gaston-Lucien e Jean-Phillipe Worth foram responsáveis por dar continuidade à casa de moda após a morte do pai, em 1895. Nesse período, o renomado Paul Poiret (1879-1944) foi um dos assistentes da casa, no número 7 da Rue de la Paix, até criar a própria label em 1903. “Foi Poiret quem compreendeu que seu mestre tinha fundamentado um significativo requinte para o mundo da moda”, comenta João Braga.
O historiador conta que Poiret resolveu criar um sindicato à parte. Assim surgiu a Câmara Sindical da Costura Parisiense, em 1910, separadamente do sindicato geral. Já na década seguinte, em 1926, surgiu a Escola de la Chambre, onde se ensinavam as técnicas do fazer manual.
Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação nazista na França, Hitler quis levar a sede da câmara para Berlim. Desde que foi fundada, a instituição tinha um diretor-geral. Naquele período, era presidida por um costureiro chamado Lucien Lelong.
A fim de evitar que o ditador levasse a Chambre Syndicale para a Alemanha, Lelong criou as regras da alta-costura na década de 1940. Em 1945, o nome muda para Câmara Sindical da Alta-Costura (Chambre Syndicale de la Haute Couture). A principal exigência foi a de que só existiria haute couture em Paris. “Mais do que francesa, é uma marca registrada parisiense”, enfatiza João Braga. Até então, não havia regras: bastava ter um padrão estético e gosto apurado para entrar no setor.
Por meio da moda, Paris se recuperou economicamente e passou a atrair a clientela estrangeira, principalmente a norte-americana. Desde então, a alta-costura é o que há de mais luxuoso no universo fashion.
Critérios para as casas de alta-costura
João Braga explica que, quando se fala em costureiro na França, é o status mais alto da moda, o profissional que faz a roupa de ateliê. Já o estilista, é o que cria para a indústria em produção em série. Alguns costureiros também são estilistas, como é o caso de Karl Lagerfeld, que faz a grife (prêt-à-pôrter) e a maison Chanel. O substantivo francês maison significa “casa” e é o nome pelo qual se deve referir às etiquetas de alta-costura.
Ainda no século 20, Poiret estabeleceu o próprio negócio na Place Vendôme e depois, mudou-se para a Champs-Élysées. Por isso, a região chamada Triângulo de Ouro ficou estabelecida entre as regras para a alta-costura, na delimitação de três avenidas: Champs-Élysées, Montaigne e Georges V. Atualmente, as maisons precisam estar dentro do Triangle d’Or, além de ocuparem um prédio inteiro, que não pode ser alugado.
A construção precisa ter um estilo arquitetônico reconhecido pela arquitetura. No térreo, deve haver a loja. Já no primeiro andar, um grande salão de atendimento exclusivo para as clientes. “Determinadas clientes não vão aos desfiles, principalmente as que fazem parte da nobreza, em especial as árabes e africanas.”
As roupas sempre devem ser únicas, feitas à mão e sob medida. Além disso, devem ser provadas no corpo da cliente ao menos três vezes. Segundo o Business of Fashion, um ateliê precisa de pelo menos 15 funcionários trabalhando em tempo integral, além de 20 técnicos em uma das oficinas. Esses profissionais normalmente são especializados em áreas específicas. Os bordados não precisam ser feitos no Triângulo de Ouro, mas devem ser feitos em Paris.
Quanto aos preços, costumam ser os mais altos da moda e variam entre US$ 10 mil a 300 mil. “Com isso [o valor elevado], não se vende. Você vende um status, mas vai precisar de um produto para dar um respaldo financeiro, que vai ser o perfume, uma bolsa ou óculos”, explica o professor.
Todas as casas de alta-costura precisam ter ao menos um perfume no catálogo. É o item que vai sustentar o negócio, normalmente seguido de cosméticos (2ª linha), acessórios (3ª) e prêt-a-porter (4ª). Curiosamente, a linha menos lucrativa é justamente a de alta-costura (5ª). “Eles ganham rios de dinheiro e sustentam os desfiles de alta-costura, que nem sempre são usáveis, mas fazem parte da sofisticação, do prestígio parisiense”.
O historiador acrescenta que, antigamente, o desfile exigia 72 looks. Com o tempo, passou a ser 50, depois diminuiu para 35. Hoje, são obrigatoriamente 25, com opções para o dia e noite. “Essas premissas podem mudar de acordo com o ar dos tempos. Um novo presidente chega com uma nova proposta que pode ser acolhida. Só não muda ser Paris e o perfume”, acrescenta João Braga.
Outro detalhe que não é regra, mas passou a ser tradição, foi o encerramento com um vestido de noiva. “É a roupa mais desejada pela mulher. Normalmente, é a mais cara de seu guarda-roupa, para ser usada uma única vez. O figurino considerado mais mágico”, diz.
Na alta-costura, não há limites para a criação, com aura mais conceitual e extravagante. É considerada o verdadeiro laboratório criativo, de onde saem as ideias que ganham um sentido mais comercial no prêt-à-porter.
Apesar das coleções normalmente serem femininas, algumas maisonsapresentam peças masculinas, como Givenchy e Jean Paul Gaultier na temporada outono/inverno 2018-2019.
Categorias
Atualmente, há três maneiras de pertencer ao setor da alta-costura: como membro aderente, representante ou convidado, nesta ordem. Os critérios acima são as exigências para os membros permanentes, que é o caso de maisons como Chanel, Givenchy, Schiaparelli, Margiela e Jean-Paul Gaultier. Elas são permanentes até que decidam sair por vontade própria ou decisão do presidente da câmara.
“Uma das exigências é que você tenha um padrão estético sofisticado, relativo à estética francesa. Depois da saída de Galliano da Dior, e do suicídio do McQueen em Londres, a moda ficou menos exagerada e mais “pé-no-chão”, pondera o especialista.
Assim como existe a Câmara Sindical da Alta-Costura em Paris, existem câmaras correspondentes em outros países. Na Itália, recebe o nome de Altamoda e se baseia na realidade francesa. Na Inglaterra e Estados Unidos, a linha recebe o nome de high fashion ou high style, que corresponde à alta-costura.
Dessa forma, acontece a relação com os membros representantes: “É possível representar a câmara da alta-costura do seu país em Paris e a alta-costura no seu país de origem. O Valentino representa a alta-moda em Paris e a alta-costura na Itália”, exemplifica João Braga.
Já para os membros convidados, as regras são mais simples. Basta que a Câmara Sindical decida que determinado designer está fazendo um trabalho interessante, então pode convidá-lo com aval das casas permanentes. “Se, na estação seguinte, a câmara decidir que ele não será convidado, somente aquela coleção anterior entrou para os anais da alta-costura”, observa. Eles podem ser estrangeiros e fabricar as roupas no país de origem.
E a alta-costura “do Brasil”?
Como vimos, não é qualquer moda de luxo que pode ser chamada de haute couture, pois o nome é uma patente criada em 1945, segundo o site oficial. “No Brasil, não inventou-se um nome e todo mundo fala: sou estilista de alta-costura. Primeiro, estilista não faz alta-costura. Segundo, não tem alta-costura no Brasil, você tem que pedir a licença da câmara”, aponta João Braga.
Dois brasileiros fizeram parte da lista da Câmara Sindical da Alta-Costura. No fim dos anos 1990, o estilista Ocimar Versolato (1961-2017) apresentou uma coleção própria, depois de ser diretor criativo da Lanvin por dois anos. O segundo foi Gustavo Lins, que foi membro convidado e chegou a ser permanente em 2011 — sua casa de moda, Atelier Gustavolins, faliu em 2015.
Clientes
Para produzir um vestido com toda a sofisticação da haute couture, os artesãos podem levar mais de 100 horas. Geralmente, as clientes são da África, Oriente Médio ou estrelas de Hollywood. No mundo inteiro, existem cerca de 2 mil compradores, enquanto somente 200 têm o privilégio de serem fidelizados. A maioria são mulheres.
A maior cliente de todos os tempos, segundo o historiador, foi uma senhora americana chamada Mona von Bismarck, que tinha como costureiro favorito Cristóbal Balenciaga. O espanhol é considerado o maior nome de todos os tempos da alta-costura: “Era criativo, tinha tino comercial, sabia bordar, costurar. Ninguém conseguiu superá-lo ainda hoje”, reconhece o professor. Hoje, Balenciaga é uma grife que dá o que falar, mas não é mais uma maison.
Como não existe liquidação de luxo, as roupas dos desfiles que não são vendidas viram parte do patrimônio da casa e podem ser emprestadas para grandes eventos. Por serem peças únicas, só podem estar em dois lugares: no guarda-roupa da cliente ou no acervo. “Essas roupas vão para cemitérios (como são carinhosamente chamados) preciosíssimos”, finaliza João Braga.
Fonte: Portal Metrópoles