Um estudo liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz em parceria com o Instituto Pasteur, na França, aponta para o potencial de re-emergência de transmissão urbana de febre amarela no Brasil, reforçando a importância de medidas preventivas, como a vacinação e o controle vetorial. Em laboratório, os cientistas mediram a eficiência de mosquitos urbanos e silvestres do Rio de Janeiro quanto ao potencial de transmitir o vírus da febre amarela. Os dados apontam que os insetos fluminenses das espécies Aedes aegypti, Aedes albopictus, Haemagogus leucocelaenus e Sabethes albipirvus são altamente suscetíveis a linhagens virais tanto do Brasil, quanto da África. A competência vetorial dos mosquitos Aedes também foi verificada em Manaus e, em menor grau, em Goiânia. A capacidade de transmissão desses vetores foi confirmada ainda para a cidade de Brazzaville, capital do Congo.
Mosquitos dos gêneros Aedes, Haemagogus e Sabethes já são conhecidos há décadas pela ciência como vetores do vírus da febre amarela. No entanto, sua eficiência para disseminar a doença pode variar devido à diversidade de populações de insetos e da combinação entre os insetos e as diferentes linhagens virais. Por isso análises locais, como a que acaba de ser realizada, são importantes. “Atualmente o Brasil enfrenta epidemia decorrente do ciclo de transmissão silvestre de febre amarela. No entanto, temos de estar vigilantes sobre o potencial de disseminação do vírus por espécies urbanas de mosquitos. Por isso estudos como esse são fundamentais”, afirma Ricardo Lourenço de Oliveira, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC e um dos coordenadores da pesquisa. “Os dados indicam que na hipótese de o vírus ser introduzido na área urbana do Rio de Janeiro por um viajante infectado, existem múltiplas oportunidades para o início da transmissão local”, acrescenta o pesquisador. Publicado na revista internacional Scientific Reports, o trabalho também contou com a colaboração do Instituto Evandro Chagas, no Pará.
Para prevenir o transbordamento da doença do ciclo silvestre para o urbano, o estudo ressalta que é essencial que as pessoas em contato com as áreas de mata onde há circulação da forma silvestre do agravo sejam imunizadas. Além disso, considerando o risco de introdução a partir de outros países endêmicos, a exigência de vacinação para viajantes que visitam as cidades brasileiras deve ser avaliada. “Eliminar os criadouros e controlar a proliferação do Ae. aegypti é outra medida importante para evitar a re-emergência da febre amarela urbana no Brasil, além da questão básica e já amplamente conhecida de ser responsável pela transmissão dos vírus da dengue, zika e chikungunya”, ressalta a entomologista Dinair Couto Lima, pesquisadora do mesmo Laboratório e primeira autora do artigo.
Testes de competência vetorial
A pesquisa contemplou mosquitos Ae. aegypti e Ae. albopictus de regiões do Brasil com características epidemiológicas variadas em relação à circulação do vírus da febre amarela. Na Amazônia, onde a forma silvestre da doença é endêmica – ou seja, os casos são registrados de forma sustentada – foram coletados e testados insetos de Manaus. No Centro-Oeste, que registra surtos cíclicos de febre amarela silvestre e é apontado como área de transição entre a região endêmica e as áreas livres do agravo no país, os mosquitos foram capturados em Goiânia. Já no litoral do Sudeste, onde não havia notificação de casos por mais de 70 anos, até o surto iniciado no final de 2016, os pesquisadores escolheram o Rio de Janeiro para as coletas. Neste caso, além dos Aedes, foram avaliados mosquitos silvestres das espécies Hg. leucocelaenus e Sa. albipirvus. O trabalho analisou ainda insetos Ae. aegypti e Ae. albopictus coletados em Brazzaville, no Congo, onde a febre amarela silvestre é endêmica, mas causada por linhagens virais diferentes das detectadas no Brasil.
Com relação aos vírus da febre amarela, entre os sete genótipos que circulam no mundo, o estudo contemplou a linhagem sul-americana 1, predominante no Brasil, incluindo o subtipo 1D, responsável pela maioria dos casos até 2001, e o subtipo 1E, majoritário nos últimos anos. Também foi utilizada uma linhagem da África ocidental, isolada no Senegal.
Para realizar os testes, os pesquisadores coletaram ovos dos mosquitos nas cidades e em áreas de mata. Apenas no caso dos Sa. albiprivus, foram estudados insetos de uma colônia mantida em laboratório no IOC desde 2013. Após a eclosão dos ovos, os mosquitos foram separados por espécie e gênero. Grupos de fêmeas foram alimentados com amostras de sangue contendo vírus da febre amarela de diferentes linhagens. A capacidade de transmissão dos insetos foi medida pela presença de partículas virais infectantes – capazes de causar infecção – na saliva dos insetos após a ingestão do sangue com vírus. Quando testadas as linhagens virais brasileiras, o potencial para propagação da doença foi confirmado para todas as populações de mosquitos. Apenas os Ae. albopictus de Manaus não se mostraram capazes de transmitir a linhagem viral africana.
Além de confirmar o potencial de transmissão da febre amarela nas diferentes regiões, o estudo aponta que a eficiência para propagar o vírus varia entre as populações de mosquitos. Entre os vetores urbanos brasileiros, os Ae. aegypti do Rio de Janeiro apresentaram o maior potencial para disseminar o agravo, com mais de 10% dos mosquitos apresentando partículas virais infectantes na saliva 14 dias após a alimentação, independentemente da linhagem viral considerada. “De forma geral, verificamos que os Ae. aegypti e Ae. albopictus do Rio de Janeiro e de Manaus foram mais suscetíveis para transmitir os vírus da febre amarela, enquanto os insetos de Goiânia mostraram-se capazes de propagar a doença, mas com muito menos eficiência”, comenta Ricardo.
Os vetores silvestres do Rio de Janeiro apresentaram capacidade ainda maior para disseminação do agravo. Dependendo da linhagem do vírus considerada, 10% a 20% dos Hg. leucocelaenus apresentaram partículas infectantes na saliva 14 dias após a ingestão de sangue infectado. Já entre os Sa. albipirvus, esse percentual variou de 23% a 31%. Níveis semelhantes de competência vetorial foram observados entre os mosquitos Ae. aegypti e Ae. albopictus de Brazzaville, no Congo, o que, segundo os cientistas, reforça o potencial para transmissão da febre amarela urbana na também na África ocidental. De acordo com Dinair Couto, características comportamentais dos mosquitos Ae. aegypti e Ae. albopictus podem contribuir para a reurbanização da doença (foto: Gutemberg Brito, IOC/Fiocruz)
Comparações do potencial de transmissão
Os dados indicam que a competência vetorial dos mosquitos Aedes para transmitir a febre amarela é menor do que para a disseminação de outras arboviroses. Em 2014, um estudo também liderado pelo IOC em parceria com o Instituto Pasteur apontou que 80% dos Ae. aegypti e 95% dos Ae. albopictus de algumas populações das Américas têm potencial para transmitir o vírus chikungunya apenas sete dias após ingerir sangue infectado. Com relação ao vírus zika, uma pesquisa publicada pelo mesmo grupo de cientistas em 2016 indicou que 60% a 93% dos Ae. aegypti do Rio de Janeiro podem disseminar a doença 14 dias após a ingestão de sangue infectado com linhagens virais isoladas no estado. No entanto, segundo os cientistas, considerando os hábitos comportamentais do Ae. aegypti e a grande frequência desse vetor nos ambientes urbanos brasileiros, os níveis verificados na pesquisa são suficientes para apontar o risco de transmissão urbana da febre amarela.
De acordo com os pesquisadores, o Ae. aegypti tem alto potencial para disseminar doenças devido ao contato constante com as pessoas: o mosquito estabelece seus criadouros dentro ou próximo das residências e se alimenta preferencialmente de sangue humano. Desta forma, o cenário observado no Rio de Janeiro, onde foram verificados os maiores níveis de competência vetorial dos mosquitos urbanos, além de alta capacidade de transmissão dos insetos silvestres, reforça a necessidade de alerta. “A febre amarela está às portas das cidades mais povoadas da costa atlântica brasileira, zona com uma das maiores densidades humanas de toda a América do Sul. A epidemia registrada em Angola, na África, no ano passado exemplifica a ameaça que isso representa. A partir de Angola, a doença chegou a países vizinhos, como a República Democrática do Congo e Uganda. A maioria dos casos foi registrada nas cidades, sugerindo a participação de vetores urbanos, especialmente o Ae. aegypti”, ressalta Ricardo.
Encontrado em matas, ambientes rurais, quintais e peridomicílios, os Ae. albopictus também podem contribuir para a urbanização da febre amarela. Segundo os cientistas, estes mosquitos se reproduzem em áreas com maior cobertura vegetal e costumam picar animais silvestres e domésticos, além do homem. “Os mosquitos Ae. albopictus podem se mover facilmente da floresta para locais periurbanos, e os maiores índices de infestação por essa espécie no Brasil são relatados nas regiões Sudeste e Sul, onde a febre amarela está circulando atualmente. Assim, devemos considerar a hipótese de que os insetos Ae. albopictus podem desempenhar o papel de ‘vetor de ponte’, ligando o ciclo silvestre ao ciclo urbano do agravo”, pondera Dinair.
Nas áreas peridomiciliares, as mesmas medidas adotadas contra o Ae. aegypti são importantes para combater o Ae. albopictus, incluindo evitar o acúmulo de água parada em garrafas, pratos de plantas e outros objetos deixados em quintais, assim como realizar a manutenção de calhas, instalar telas em ralos nesses ambientes e manter caixas d’água e outros depósitos bem vedados. A vacinação, nas localidades onde a imunização é indicada pelo Ministério da Saúde, também é fundamental para a prevenção da febre amarela.