Em 2010, mais de 105 médicos de cuidados primários dos EUA, alocados em três diferentes instituições médicas, começaram a compartilhar suas anotações clínicas com seus pacientes. Apoiado pela Fundação Robert Wood Johnson e outras instituições, o OpenNotes foi criado como um estudo para avaliar a aceitabilidade dessa nova forma de relacionamento, no qual médicos e pacientes compartilham os dados clínicos. Perto de 19 mil pacientes participaram do programa, tendo as organizações hospitalares Beth Israel Deaconess Medical Center (Boston), Geisinger Health System (Pensilvânia) e Harborview Medical Center (Seattle), como guardiões dos objetivos do projeto.
A maioria dos pacientes do estudo escolheu ler suas anotações através de um Portal com altos níveis de segurança e privacidade, relatando os benefícios dessa nova proposta. Depois de uma consulta, o médico assinava eletronicamente uma mensagem notificando o paciente que as suas anotações estavam disponíveis no portal. Após fazer o login, o usuário entrava no site e lia os dados anotados pelo médico. Antes da consulta seguinte, outra mensagem do médico incentivava o paciente a rever suas anotações de modo a ser preparar para o encontro. Após 12 meses, 99% dos pacientes queriam continuar a ter acesso às anotações clínicas (on-line) e nenhum dos médicos decidiu interromper a prática.
Alguns resultados do projeto são interessantes para rastrear a efetividade do programa: (1) 80% dos pacientes abriram pelo menos uma vez as anotações; (2) mais de 2/3 relataram compreender melhor a sua saúde e as suas condições médicas, cuidar melhor de si, ingerir seus medicamentos com maior rigor, ou sentir-se mais no controle sua Saúde; (3) de 1 a 8% ficaram confusos, preocupados ou ofendidos com o que leram; (4) cerca de 20% compartilharam uma anotação com outra pessoa; (5) mais de 85% relataram que as anotações do médico iria influenciar a escolha de novos fornecedores.
Por parte dos médicos, apenas 3% relataram passar mais tempo respondendo as perguntas dos pacientes fora do ambiente de consulta, sendo que 11% gastaram mais tempo escrevendo ou editando anotações. Cerca de 20% relataram que o programa os ajudou a mudar a maneira como escrevem sobre o câncer, saúde mental, abuso de substâncias, ou obesidade.
Com base nesses resultados, as instituições participantes decidiram expandir os serviços do OpenNotes para todos os seus ambulatórios, bem como para toda a rede de cuidados de primary care. No Beth Israel Deaconess Medical Center, um grande hospital de ensino, 85 mil pacientes agora podem ver as anotações de seus médicos (on-line). No Geisinger, um sistema rural integrado de saúde, 220 mil pacientes já acessam suas anotações e no Harborview Medical Center mais de 128 mil têm acesso a seus registros.
Outras instituições nos EUA seguiram a mesma direção, tais como: Mayo e Cleveland Clinics, Dartmouth-Hitchcock Medical Center, MD Anderson Cancer Hospital, Kaiser Permanente Northwest e o Group Health Cooperative. Resultado: até dezembro de 2014, quase 5 milhões de pacientes nos EUA já tinham acesso on-line às suas anotações médicas. Um sucesso, sem dúvida.
ADESÃO MÉDICA
Ocorre que dos quase 300 médicos convidados a participar do projeto original, 143 rejeitaram a ideia, sendo que só 105 aceitaram ser voluntários. Se a boa notícia é que uma parcela dos médicos já entende a necessidade de aderir às novas tecnologias, não tão bom é o recado de que ainda existe muita rejeição. Há pouca coisa a fazer diante dessa forma de pensar. Médicos utilizam as tecnologias de acordo com sua conveniência e desde que isso não coloque em risco seu modelo funcional de lidar com os pacientes. Todos estão prontos a solicitar exames de última geração, por exemplo, realizados em equipamentos cuja tecnologia eles enaltecem e utilizam. Todavia, quando são convidados a empregar o Registro Eletrônico de Saúde (RES) em suas atividades diárias, a rejeição é sistêmica.
Um esforço para que médicos e demais profissionais de Saúde utilizassem o RES (EHR-Electronic Health Records) nos EUA foi feito pelo Congresso, quando aprovou em 2009 a Health Information Technology for Economic and Clinical Health Act (HITECH). A lei previa tanto incentivos como sanções para incentivar a adoção generalizada dos EHRs. Embora médicos e corporações tenham avançado no uso, ainda existem resistências colossais.
Em dezembro de 2014, os Centers for Medicare and Medicaid Services (CMS), uma autarquia ligada à Secretaria de Saúde do Governo norte-americano, anunciou que 257 mil médicos não conseguiram alcançar o chamado “meaningful use” (uso significativo) dos EHRs e, portanto, teriam suas remunerações por serviços prestados ao Medicare (sistema gerido pelo governo, destinado às pessoas de idade igual ou superior a 65 anos) teriam seus rendimentos reduzidos em 1%, em Janeiro de 2015. Segundo a Associação Médica Americana, essa quantidade de profissionais é mais do que a metade de todos os médicos cobertos pela lei HITECH.
No início, o programa HITECH forneceu fundos públicos para que os prestadores de serviços médicos pudessem investir em soluções de EHR, apoiando financeiramente a adoção do prontuário médico digital. Essa carga de incentivos permanecerá até 2016, mas as sanções não deixarão de ser aplicadas: redução de 1% em 2015, subindo para 5% ao longo de cinco anos. Trata-se de uma “dentada” poderosa na receita dos médicos que não aderem ao programa.
Por outro lado, muitos profissionais reclamam de várias inconsistências do HITECH, como também vociferam contra as ferramentas de EHR, para as quais são “convidados” a utilizar. Reclamam da sua praticidade, do tempo que lhes toma para inserir os dados, da lentidão de alguns sistemas, da falta de funcionalidade de certas aplicações, das exigências protocolares de segurança e privacidade (senhas de acesso, certificação digital, etc.) e reclamam, acima de tudo, que a prática médica está sendo preterida em função do controle digital dos dados do paciente. Sem falar das reclamações não declaradas, como, por exemplo, que os EHRs expõem sua habilidade profissional, audita sua tomada de decisão clínica e abre uma porta para avaliação de sua competência médica.
O presidente da Associação Médica Americana, dr. Stephen Pilha, expressou consternação com a notícia de que 257 mil médicos seriam penalizados em 2015. “O programa se destinava a aumentar o uso da tecnologia por parte dos médicos, e também para ajudar a melhorar o atendimento e a eficiência. Infelizmente, o rigoroso conjunto de one-size-fits-all (solução única para todos) falha para médicos e para os pacientes”, explicou Pilha em um comunicado oficial. Para a AMA, os requisitos cobrados “estão impedindo a maior participação no programa, forçando os médicos a adquirir e usar EHRs caros, com má usabilidade e que interrompem o seu fluxo de trabalho, criando frustrações significativas que interferem na assistência ao paciente, elem de impor um fardo administrativo adicional”.
Por outro lado, Twila Brase, presidente do Citizens’ Council for Health Freedom (organização independente que protege os interesses dos cidadãos com relação à Saúde), entende os requisitos de “meaningful use” como uma forma do governo desempenhar um papel mais atuante no controle direto dos cuidados médicos prestados no país. “Se você necessita controlar o Sistema de Saúde em sua interidade, do que você precisa?”, perguntou Brase. Ela responde: “Você precisa saber o que os médicos estão fazendo, precisa decidir em cima do que eles fazem, e precisa, portanto, de um sistema eletrônico de registros para tomar as decisões”.
A história do HITECH está apenas começando, com desdobramentos complexos para os próximos anos. Algumas empresas de TICSs (provedores de EHRs) e prestadores de serviços médicos aproveitaram os incentivos e desenvolveram aplicações absurdamente complicadas, erráticas e sem o mínimo de consulta aos médicos que as iriam utilizar. Mas, com o tempo, passaram a ser uma minoria, sendo que boa parte do mercado já avança na direção de utilizar cada vez mais o EHR, com a qualidade das aplicações em uma espiral crescente.
CULTURA OBSOLETA
Mas, afinal, porque os médicos rejeitam o prontuário eletrônico? Por que os profissionais de Saúde são resistentes em utilizar as soluções de eHealth no seu dia a dia? Por que a inovação chega tão lentamente ao cotidiano da prática médica?
Não faltam explicações, nem contornos que balizam o corolário de justificativas para essa rejeição. Muitos delas são perfeitamente aceitáveis, outras estão perdendo força a partir da própria prática diária dos médicos com a inovação. Mas a maioria ainda é absurda. Defender o uso do prontuário em papel com argumentos como é “mais fácil e prático de utilizar”, “não exige horas de treinamento em computação” e outras bizarrices dessa natureza, não se justificam em pleno Século XXI.
Um dos graves problemas para adoção do RES e de outras tecnologias inovadoras é a interoperabilidade. Sistemas não conversam com outros sistemas como deveria conversar. Esse é um impedimento real: se um médico atua em três ou mais hospitais, com diferentes modelos de RES (desenvolvidos por fornecedores diferentes), é ilusório pensar que ele possa aprender a todas as funcionalidades de todas as aplicações. O mesmo ocorre com a prescrição médica eletrônica, com cada hospital utilizando a sua e não abrindo mão de integrar seus dados com seus competidores. Embora já existam padrões seguros e claros de integração sistêmica (padrões de interoperabilidade), que cada software deveria ter quando no desenvolvimento da solução, na prática as coisas não funcionam bem assim. Cada fornecedor (ou hospitais que desenvolvem suas próprias aplicações) não se sente confortável em “abrir as portas” de sua aplicação aos seus concorrentes, provendo integração.
O mesmo se dá com os aplicativos em mHealth. Centenas deles surgem a todo instante, mas seu grau de data exchange é difícil e raro. Assim, o usuário tem de ter um app para controle nutricional, que não “fala” com o seu aplicativo de dietoterapia, que não se comunica com o app de gestão de diabetes, que, por sua vez, não possui qualquer troca de dados como o PHR (Personal Health Records) utilizado pelo usuário. O que dizer então dos apps para os médicos, que lidam com dezenas de disciplinas clínicas simultaneamente? Uma babel, que vem sendo mitigada a medida que um mesmo fornecedor passa a disponibilizar inúmeros tipos de aplicativos em mHealth, o que ocorre, em geral, pela fusão ou aquisição de pequenos fornecedores. É pouco provável que com o advento da computação em nuvem esses problemas de interoperabilidade não sejam reduzidos. Afinal, com um mercado consumidor gigantesco fica difícil imaginar que fornecedores, consumidores, financiadores, Estado e demais players da Cadeia de Saúde deixem de se entender.
Em pleno Século XXI, a medicina ainda é uma prática fortemente vigiada, sendo que em alguns ambientes mais parece uma sociedade secreta, com juramento, rígidos protocolos, diretrizes legalistas, códigos de bioética, níveis filtrados de comunicação entre médicos e pacientes, etc. Médicos são informados sobre as atualidades clínicas através de seminários, medical journals, revistas especializadas, reuniões intrapares e outras formas fechadas de troca de informações. Cada nova abordagem proposta é avaliada e reavaliada em relação a algum método comprovado, passando por vários conselhos (parecidos com o “conselho de anciãos” do Século XIX) que aprova ou não a sua utilização. Só depois de uma longa e exaustiva peregrinação alguma inovação clinica-médica recebe o apoio da comunidade. Certamente existe uma fundamentação lógica para esse rigor e não poderia ser diferente. Afinal, a ciência médica é hoje (muito mais do que no passado) a ancora central da Saúde e do bem-estar da civilização.
Contrastando com esse ambiente, o universo da tecnologia é uma equação totalmente liberal, com pouquíssimas restrições, que caminha a uma velocidade não limitada, cujo desenvolvimento não segue regras ou protocolos. A única regulação é dada pelo usuário, que pode explodir o seu consumo ou decretar a sua obsolescência. A inovação tecnológica é como um incêndio. A partir da segunda metade do século passado o universo tecnológico foi se aproximando da medicina, sendo que hoje ambas caminham quase na mesma velocidade. Tecnologia e Ciência Médica criaram um pacto informal que sempre nos parece ensaiado. O sincronismo passou a ser tão natural, que talvez já não saibamos separar uma da outra, sendo que em alguns ambientes passaram a ser sinônimos. Como é possível desassociar, por exemplo, a tecnologia móvel da prática médica?
eDOCTOR
Houve um tempo em que a Ciência Médica “puxava” as tecnologias de informação e comunicação, hoje acontece ao contrário. Cada vez mais as TICSs abrem espaços para novas práticas médicas, novos modelos de tratamento, formas de diagnostico à distância, modelos e procedimentos hospitalares que melhoram a qualidade do atendimento e reduzem os custos, melhores possibilidades de desenvolver predição, prevenção e promoção da Saúde, e muitos outros vetores assistenciais turbinados pelo arsenal eHealth.
O chamado eDoctor, aquele profissional que incorporou em sua prática médica as TICSs, ainda é visto com desconfiança pelo próprio Conselho Federal de Medicina, que em sua Resolução nº 1974/2011 desaconselha (ou proíbe) que médicos realizem consultas à distancia (se quer por telefonia fixa). Mas não há forma de impedir essa aderência. Os exemplos de adição de valor no trabalho médico são claros, e se tornam cada vez mais notáveis.
Outro fator inibidor é a pressão que os financiadores da Saúde Suplementar (Seguradoras, Planos de Saúde, Cooperativas, Estado, etc.) exercem sobre os médicos no sentido de reduzir as práticas médicas que utilizam a tecnologia como sustentação. Essa é uma daquelas meias-verdades que dançam na mente de muitos gestores da Saúde. Jonathan S. Skinner, economista e professor da Dartmouth College e da Geisel School of Medicine, publicou artigo na MIT Technology Review (“The Costly Paradox of Health-Care Technology”), explicando que existem vários tipos de tecnologia, e que algumas encarecem mais os tratamentos do que outras. Mas, quando queremos quantificar a utilização tecnológica para produzir relatórios de relação custo/benefício usamos as tecnologias mais caras.
Para Skinner, existem três “gavetas” para tratamentos clínicos, classificadas de acordo com o seu benefício para a saúde por dólar gasto. A primeira categoria de tecnologias inclui, por exemplo, antibióticos para infecção bacteriana, ou um elenco de procedimentos simples para vários tipos de fratura, ou a utilização de aspirina e betabloqueadores para pacientes com ataque cardíaco. Nem todos esses tratamentos são baratos (medicamentos antirretrovirais, para pessoas com HIV, podem custar US$ 20.000 ao ano), mas eles fazem parte da “corrida tecnológica” e mantêm os pacientes vivos, ano após ano, não produzindo impacto significativo no crescimento das curvas de custeio.
A segunda categoria de tecnologias inclui procedimentos cujos benefícios são substanciais para alguns pacientes, mas não para todos. A angioplastia, por exemplo, utilizada para aliviar os vasos sanguíneos bloqueados no coração, é dirigida a pacientes tratados com ataques cardíacos nas primeiras 12 horas, sendo eficazes em termos de custos. Todavia, muitos pacientes (aconselhados por médicos, é claro) utilizam o procedimento de imediato, mesmo quando a situação para seu uso é pouca clara. Sistemas de Saúde, notadamente nos EUA, compensam generosamente a angioplastia, sendo ela utilizada corretamente ou não. O valor médio dessa inovação como benefício para a saúde por dólar gasto caminha em direção a zero.
Para o economista, a terceira categoria tecnológica inclui tratamentos cujos benefícios são pequenos ou são apoiados por pouca evidência científica. Nessa categoria, estão os tratamentos cirúrgicos de alto custo, como a fusão espinhal para dor nas costas, ou os aceleradores de prótons para tratar câncer de próstata, ou tratamentos agressivos para pacientes com 85 anos ou mais que sofrem de insuficiência cardíaca, etc. As evidências sugerem que o valor desses tratamentos dificilmente poderá ser comparado com as alternativas mais baratas. Na dúvida eles são utilizados, sendo que muitas vezes para conforto do médico (que não está disposto a arriscar em alternativas mais baratas). “No entanto, se um hospital constrói um acelerador de prótons de 150 milhões de dólares ele terá todos os incentivos para usá-lo tão frequentemente quanto possível. E os hospitais estão se carregando cada vez mais com essas tecnologias; o número de aceleradores de prótons nos Estados Unidos está aumentando rapidamente”, explica Skinner.
CUSTO X BENEFÍCIO
Não é somente a “tecnologia” que está dirigindo os crescentes custos em Saúde, mas sim o tipo de tecnologia que é desenvolvido, adotado, e, em seguida, difundido através de hospitais e consultórios médicos. Quem acaba ficando com a pecha de “gastadora” é a tecnologia como um todo, sendo a inovação a grande vilã dos altos custos do setor. Cresce o consenso de que a inovação em Saúde será também uma busca para encontrar o equilíbrio entre custo x benefício.
PANORAMA NACIONAL
No Brasil, a pressão para que médicos contenham sua caneta na direção de tecnologias caras é brutal. Diferente dos EUA, nossos Sistemas Público (SUS) e Privado (Suplementar) têm enormes dificuldades para repassar custos ao consumidor final. Sobra para o médico a tarefa de filtrar a inovação tecnológica, e isso acaba fazendo parte de seu “DNA funcional”. Só os pacientes que se beneficiam de planos de Saúde alocados no topo da pirâmide têm “alvará” para utilizar qualquer tecnologia médica. Os demais, como os pacientes do SUS, por exemplo, são espremidos entre o “necessário e o possível”.
Esse entrave, causado pela pressão das fontes pagadoras, inibe que médicos utilizem as tecnologias de informação e comunicação em Saúde, e quando não inibe, para conveniência individual ou da comunidade médica, formam um formidável álibi para procrastinar o uso tecnológico na prática médica. Estamos, portanto, diante de dois mundos: (1) os médicos que querem usar e acreditam que as TICSs melhoram o seu trabalho, mas que são pressionados a não fazê-lo; e (2) aqueles (maioria) que não acreditam no potencial tecnológico, ou que se sentem ameaçados por ele, ou mesmo que não tem paciência para aplicar em seu cotidiano um Registro Eletrônico de Saúde, por exemplo, e que se escamoteiam atrás de discursos sobre segurança, privacidade e bioética.
O que importa é que não existe qualquer tipo de saída para melhorar a prática médica, bem como: tratamentos, diagnósticos e procedimentos clínicos fora do universo das Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde. As alternativas já se demonstraram impraticáveis (como repasse de preços). A gestão da Saúde depende do médico, e este dependerá cada dia mais das TICSs.