Nos últimos anos, observa-se um silencioso, porém alvissareiro movimento em relação à adoção de TICs no mercado hospitalar: tem se intensificado de forma acelerada o uso, por instituições dos mais variados portes e características, do Prontuário Eletrônico do Paciente, o PEP. Ainda que esta adoção seja parcial na maioria dos casos, o fato é que o tema definitivamente entrou na pauta dos hospitais, por criar uma grande expectativa de redução de custos, aliada ao ganho na qualidade assistencial. O PEP, hoje, não é mais prerrogativa de grandes instituições, com grandes orçamentos. É um movimento que não deve diminuir de intensidade, ao contrário, quem ainda não implantou, está implantando ou pretende implantar em breve.
Mas, uma vez implantado o PEP, o que vem depois?
Abro aqui um parênteses para falar sobre a recente chegada ao Brasil da HIMSS, a HealthCare Information and Management Systems Society, e seu padrão de adoção de modelos de registro eletrônico em saúde, o EMRAM – Electronic Medical Record Adoption Model. Este instrumento, novidade no cenário nacional apesar de já ser largamente utilizado em outros países, proporciona um padrão e uma orientação no que tange à adoção de TICs no ambiente hospitalar, notadamente em relação ao registro médico eletrônico. O EMRAM estabelece oito estágios de maturidade em relação a esta prática, desde a ausência absoluta de suporte informatizado à atividade assistencial, até o estágio em que todo o processo de cuidado é devidamente orientado e amparado por recursos tecnológicos de suporte à decisão clínica.
E é neste ponto que podemos fazer a relação entre o tema central – o que fazer depois de implantado o PEP – com a experiência que a adoção de padrões internacionais nos traz: Na edição da HIMSS dos EUA, em 2014, foi divulgado em um dos painéis da HIMSS Europa, presente ao evento, que muitas organizações estancam seu processo em busca dos níveis mais altos de automação quando ainda estão no estágio 2, que é o estágio que precede a adoção da checagem informatizada da enfermagem e da prescrição eletrônica. E as três principais explicações para este fenômeno que ocorre em alguns hospitais do mundo são bastante conhecidas por aqui também:
– Foi constatada uma carga adicional de trabalho aos profissionais da assistência após o advento da informatização, impactando o tempo de atendimento e gerando desgaste em equipes médicas, de enfermagem e outras.
– Não foi observado o ROI esperado: o projeto não se pagou, vultosos investimentos foram realizados, e a contra partida em redução de custos e/ou aumento de receita não se concretizou.
– Não foi comprovado um incremento na melhoria dos processos assistenciais e administrativos. Não há evidências de ganho efetivo e mensurável na qualidade da assistência, nem na eficiência operacional de um modo geral.
Ora, havemos de convir que estes sejam motivos muito consistentes para avaliar qualquer projeto como um fracasso; mas faz-se necessário desfazer alguns equívocos nesta leitura:
A percepção de que a informatização trouxe uma carga adicional de trabalho, “engessando” o processo e aumentando o tempo de atendimento, é na verdade a constatação de que, antes do processo informatizado, simplesmente não eram feitos os registros de forma íntegra, padronizada e completa. Fazer bem feito requer de fato mais tempo, seja no segmento hospitalar, na indústria de transformação, no universo das artes e entretenimento, ou em quaisquer outras áreas do conhecimento humano.
Portanto, a questão aqui não é entre o sistema e o papel, mas entre registrar ou não os dados assistenciais adequadamente.
Entretanto, o equívoco principal reside em não haver um alinhamento prévio quanto ao escopo e à abrangência do projeto em toda a sua amplitude. Um projeto de adoção de suporte informatizado à atividade assistencial não é algo que tenha um horizonte de um ano, nem mesmo de três ou cinco anos. Também não significa apenas fazer com que médicos e enfermeiros passem a operar o sistema de gestão hospitalar. Na verdade, uma decisão desta envergadura é o início de um processo que só tem data para começar, não para terminar. É, antes, o início do ciclo contínuo da adoção de novas formas de fazer e de pensar o cuidado ao paciente, em uma perspectiva de longo prazo, com aferições pontuais dos resultados esperados, sejam eles financeiros ou assistenciais.
Como tenho afirmado em outras oportunidades, é aí que entra em cena o CIO, pois cabe à área de Tecnologia da Informação o papel de levar certas questões à organização, dentro de um contexto estratégico, cujas respostas irão nortear o alcance do Plano Diretor de TI, por sua vez alinhado ao Planejamento Estratégico da organização.
Uma das questões chave parece ser: “A organização entende como relevante para o seu negócio, em longo prazo, o uso de tecnologia da informação como suporte à assistência?”. Este é o momento do SLA estratégico, onde será definida a abrangência do Plano Diretor: queremos utilizar um sistema para “agilizar” alguns processos e cumprir determinadas obrigações fiscais, ou queremos utilizar TICs como suporte estratégico ao negócio?
Ressalto que não há nada de errado com a primeira opção, não é necessariamente uma escolha retrógrada; pode não haver chegado o momento ainda para a organização, é possível que existam outras prioridades como governança, posicionamento no mercado, resultados financeiros, etc.
Mas se a resposta for a segunda opção, alguns dos desdobramentos que ocorrerão em seguida não terão resultados visíveis em curto prazo, e são muito mais abrangentes do que fazer as prescrições médicas e as checagens da enfermagem no sistema. Iniciar um projeto de adoção de registro médico eletrônico e interrompê-lo nos estágios iniciais do EMRAM, por exemplo, é de fato um desperdício de dinheiro, de tempo e de energia por parte de praticamente todas as áreas da instituição. Algumas instituições afirmam que já possuem o Prontuário Eletrônico do Paciente quando chegam ao estágio 4 do EMRAM, mas mesmo a esta altura a percepção é a de que o projeto não valeu a pena.
E por que isso ocorre? Talvez porque o ponto crucial do projeto – a intenção estratégica de investir em uma nova forma de pensar e de agir, estendendo o uso de recursos de software aos profissionais da assistência como suporte à decisão, coisa que só acontece a partir do estágio 6 – não esteja sendo percebido pela organização como o objetivo final do projeto.
A instituição ouviu promessas de que o PEP iria melhorar os indicadores e reduzir os custos, e agora ela quer, com toda a razão, medir a entrega. Ocorre que ela, a instituição, não foi devidamente esclarecida sobre o fato de que o PEP implantado não é um estado de excelência, é tão somente o início de um novo ciclo do projeto, em que os dados a partir de agora são gerados de forma uniforme, constante e estruturada, podendo a partir daí gerar informação, conhecimento e inteligência, tão necessários ao exercício da atividade fim, em um novo cenário que inevitavelmente resultará em redução de custos e incremento dos indicadores de qualidade assistencial.
É fato comprovado que a adoção de TICs gera redução de custos, aumento de receita e ganhos na qualidade em todas as indústrias, por que na saúde seria diferente? Certamente não o é, mas prevalece ainda certa miopia ao se vislumbrar o processo como um todo, em seu começo, meio e fim, cabendo ao CIO (por vezes desconfortável) a tarefa de esclarecer a organização quanto às reais dimensões do caminho que se deve trilhar em busca do objetivo maior, que é o incremento à qualidade da assistência ao paciente, acompanhado de ganho na eficiência operacional.
Klaiton Simão, CIO na Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo.
* artigo publicado na 35ª edição da revista Healthcare Management